segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Vidadiv a ida

A fina película
a nuvem de pó cinza
que persegue meus instintos.

Tinta pintada de cores
invisíveis, modelo minha
parede - que me dizes?...
Tens vida, agora?
mas que susto... mais que susto
é tudo isto megamisturado
macroscopicamente hugeforme
imensa diminutiva segue
a vida entre seus tantos
tamanhos extremos.

Tamanhos especiais duma certa
faísca final, a vida:
sopra-se tudo ao vento
e os pedaços juntam-se sem cerimônia alguma,
cada qual ao seu tempo
nesta espécie de canção aguda.

domingo, 28 de setembro de 2008

War

Você, no almoço. Parece que está tudo na mais perfeita ordem. Não está. Não não não, você, no fundo, sabe que alguma coisa está cruelmente errada, há algo de misterioso no ar. De fato, há: quando você menos espera, aparece um ser típico, mas não menos irritante. É uma criatura grotesca, por vezes barulhenta e que, ainda por cima, é voadora. É uma mosca.

Sua primeira reação é de indiferença; deixa ela aí, eu vou é terminar de comer. E a mosca continua rondando, chamando sua atenção. Você já sabe que, mais cedo ou mais tarde, ela há de pousar. Ela pousa. Pousa sobre a mesa, a comida, o prato, você - que a dispersa incansavelmente, com uma chacoalhada do seu braço. A cena se repete algumas centenas de vezes, ela não desiste. Quando você repara, está obcecadamente observando a mosca e ainda sequer tocou na sua comida. É hora de finalizar o inseto incômodo para daí, talvez, finalizar a refeição.

Nesse momento, algumas pessoas tentam, em vão, caçar a mosca com as mãos, sem saber que esta é uma arte restrita aos ninjas. Talvez por preguiça de ir buscar o mata-moscas, talvez por quererem (inutilmente) testar suas habilidades. O fato é que, em algum momento, você irá buscar tal instrumento mortífero. Qual não é sua surpresa ao retornar à mesa e descobrir que, durante sua ausência, seu inimigo se apoderou de seu prato e encontra-se agora passeando nele, feliz da vida. A mosca acaba de lhe propor um desafio, ela lhe chamou para a briga! Agora a situação é pessoal.

Antes de tudo, você a espanta de seu prato - afinal, não seria nada sensato dar uma paulada no seu arroz. Você então espera ela aterrissar, e ela faz questão de demorar. Quando ela enfim desce, você se aproxima, portando corajosamente o mata-moscas em mão. Vagarosamente você leva seu braço e inclina a ferramenta na direção do inseto. Mas, quando você está quase desferindo o seu golpe, bzzz, ela decide ir para mais um city tour na sua cozinha. Você aguarda, ansioso.

Atenção! Ela pousou e agora você não quer mais perder tempo; vai para sua posição, coloca o mata-moscas diretamente sobre o alvo e... PAFT! Aaaaahahahahahahaha, vitória!!! A felicidade que lhe invade, porém, está só de passagem e logo lhe abandona, tão logo você vê que não há mosca alguma na bancada - que dirá uma morta. A pergunta velozmente formulada sobre onde está o cadáver é quase tão rapidamente respondida por um barulho no ar. Um bzzz estridente, que delata uma verdade inconveniente. Dois a zero para o time visitante.

Você colhe do chão o que sobrou de sua honra, junta os cacos de sua dignidade e decide que é hora de dar um fim a todo este oba-oba desenfreado. Toma na mão mais uma vez seu cansado mata-moscas e vai à luta. Ela está agora na beirada de sua mesa. Toda sua experiência lhe diz para não afobar-se, ainda assim é difícil resistir a um golpe, agora! Não, vamos com calma. Você fica lá, encarando, nervoso. O suor já começa a aparecer em seu rosto. A mosca continua inerte. Ela não desconfia de nada, você pensa.

Você passa a se aproximar, lentamente, cuidando para não fazer barulho algum - até já descalçou os chinelos. Chega na posição correta para aplicar o ataque, enfim. O nervosismo o corrói: será que devo chegar mais perto, ou daqui está bom? Será que ela vai fugir se eu me aproximar? Será que ela vai fugir se eu não me apressar? Em meio às dúvidas que lhe dão perguntas nas respostas e a pressão de toda uma sociedade, você decide agir mais e pensar menos. Segue um gesto súbito e selvagem.

PLAAAFT!!!

Você arrisca uma olhadela no resultado. O inimigo de outrora cai para fora da beirada da mesa e descreve um zigue-zague no ar, enquanto pirueteita em direção ao solo. Tudo num instante tão intenso que poderia durar horas. Quando atinge o chão, o inseto já está atordoado, acabado, exaurido.

Você olha para ele, olha para o mata-moscas e novamente volta a encarar seu rival; um misto de culpa e dever cumprido casam dentro de você. Mais o segundo do que o primeiro, você admite. Ao vencedor, as batatas (podem ser aquelas que se encontram no seu purê, mesmo). Soturno, leva o prato de comida para dentro do microondas - se a refeição esfriou, ao menos foi por uma boa causa - e suspira, aliviado, enquanto observa o timer do aparelho se aproximar do zero.

War is over.

For now.


(Originalmente publicado em 16/02/2008)

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Tesoureiro

Intocado pelos próprios toques
há aquele baú de formas e o
tesouro de sempre sempre
range as dobradiças.

Tesouro em cor e em sabor
doce verde amargo roxo
rosa preto de sal, fim!

Conhecimento duvidoso
de uma outra realidade
verdade oniuniversal!

Tesouro que é um mistério:
como foi que te conheci
se nunca ao menos te vi?
É que sinto e logo todas
as saudades viram pedra
e eu evaporo...

Tesouro em forma de coração
(humano)
fita-me, da palma de minha mão.

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Canção do mundo em queda

Ah! Por que tudo cai?
Tudo tudo cai cair
caindo
instantâneo caiu!
que cansaço que
angústia que
prisão!

O mundo é por demais traiçoeiro
e tudo tudo mesmo resulta
num cair eterno e infinito e

AH!

Tudo, cai as pessoas e livros e
pitangas e astronautas e o
universo enfim cai num
movimento meticulosamente previsto.

Quedo apenas para tentar reerguer-me
e quando Caio cai, caio também eu
no longilíneo buraco negro
que carrego dentro de mim
precipício, eu caio na queda
paranormal, pré-cantada,
caindo o mundo também tem
sua queda!

Fantasma e eu

O fantasma na cadeira,
ele ri...
sozinho, ri da morte
pois teve consigo a sorte
de uma vida com janelas.

Fantasma fantasia inda sentado,
balança sua luz e breu
enquanto permanece, invisível,
dentro deste momento eterno
maior que o infinito.

Sê vida e ascende aos céus!,
berro em minha miopia.
Mas o fantasma de rosto sem cor

está sentado

(diz ele que esqueceu como se voa)
e todavia é tão livre...
quero ajudar-lhe a ser
mas ele é contente, e ri!

Ri de erros que cometi e que
infelizmente não corrigi.
O vulto d'alma penada é breve,
morrendo de rir...

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Tua face

Minha face,
já pálida de nascença,
expressa tristeza; e pavor;
nem sempre em quantidades suportáveis.

Você aí, amigo,
que carrega o mundo-em-forma-de-cruz
junto ao peito: devoção a teu sacrifício.
Não há infortúnio igual ao teu,

eu sei.

Há sim uma sublime concentração
para criar uma jaula ao teu redor
que te impeça dos pecados perdoáveis
(aqueles mesmos, que te contei...)

Cada um; na rua, na padaria, no
supermercado,
perambulando o labirinto seu,
enfrentando os minotauros a socos.
Renasce o dia, enfim, mais pálido que
o céu e o eu e a terra e o tudo.

Ah, minha face,
pudesse motrá-la em público
seria o juízo final dos anjos.
Mas os alfaiates alunos da alquímica
já costuraram esta grotesca máscara sedosa,
ridícula.

Arranco-a em vão; pertence-me.
Nesse ar orgânico sufocante
cujo servo sou eu mui delirante
flutua a pena branca.
Ora!, deixo-a escapar
por preguiça no movimento de fechar a mão.

Que triste a velocidade com que o mundo gira,
diz-me tua face e lábios inocentes demais.
Mas a minha inda não te falas
nada do que sei e do que decorei.
Ah, minha face...
ah! O tempo é curto.

domingo, 14 de setembro de 2008

Soluços

- Então...
- Então que eu me senti, que eu me sinto muito estranho, sabes? É que às vezes as coisas parecem estar tão longe e disfocadas que mal podemos saber se existem. Não temos como descobrir se a barra de ferro é deveras sólida ou se tremula ao vento... se é mais surda que o fogo. Fogo é que sempre (se) escuta, sempre de olho no ambiente... e logo nem mais fogo é. Vais saber qual tarde que virará noite súbita, e encontrarei-me correndo na chuva, num céu pesado e fugindo das minhas costas? Vais saber!... Não sei nem, ora, pra quê te conto isto. Mas veio um anjo... não, anjo não; uma luz, veio uma luz ontem enquanto deitava-me à cama, e as coisas mudaram de significado, sabes o que digo? Olho novamente a mesa e os objetos mutam-se. Olho o chão e este vira nevoeiro espesso. E as idéias correm tão tão tão depressa, à toa... fuga! Os conceitos, vasos, vidros, nossa, me espiam tortos, oblíquos, dá medo. Volto àquela luz e fico nervoso, tímido, instantâneo. Pareço uma torre, me entendes? É que dá uma vontade - sabe quando tu estás num estádio carregando uma lata na mão e a tristeza te faz amassá-la (tu és indiferente ao machucado na mão) e arremessá-la contra a parede, não importa o quanto esta dista de tu? Pois sabes, esta vontade, alheia a mim, é que me bate... não é tristeza; não é da compaixão ou pena dos outros que preciso. Entendes o que digo? Também os alarmes, os alarmes... me soam e fazem zumbir os tímpanos, agudos. Me pegam em meio da noite, durante meus monólogos consoantes... sabes do que digo? Entendes do que se trata?
- Entendo! Ora pois.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

O eu sei do mundo

Sei da vida que és linda por excelência
sei até

bem demais.
Sei como se formam as ondas infinitas no mar,
como é possível o vôo dos pássaros.
Sei da vida já vivida em reticências
conheço os caminhos das almas
e todos os seus caprichos exatos,
errôneos.

Sei dos homens e das galáxias,
das frutas e dos insetos,
encontro-me mais inquieto que o dúbio inseto!
Contraio-me em minha carapaça
buscando alguma proteção livre.

Sei sim, mui de tudo, e conservo
meu saber sem agir,
o flutuar intransitivo
do amar sem tocar nem corrigir.

Ultimato

Como é difícil!

Quero umas luvas de veludo
para proteger minhas mãos
dos pecados deste mundo destemido.
Mas minhas mãos estão brancas...
As luvas já nem cabem mais.

Ah, como é difícil!

Encontrar uma fala pra prosa,
um versejo ao poema;
um ouvido à boca minha,
pensada sozinha por meus
antepassados ultrapassados,
por meu vulto ígneo.
Que foi? Homens também tem magma em si...

Como é difícil!

Saio na rua e berro mais alto que minha voz:
dificílimo!
Mas o ônibus mecânico
abafa este ônix que lapidei
com meu próprio conhecimento.

Por isso não vale nada, e
ah!, concluo: morte é tão mais simples,
e essa vida termina sempre num
belo movimento interminado.

Sei bem que a morte é simples,
a vida é simples
e as pedras rolando e os
passos passando são simples.
Mas o amor - ah, como é difícil! -
é mais complicado que as vias
do mundo retorcidas em viradas rodovias
cambaleantes ao toque terno
dos amantes amar eterno!

Pra tudo se tem remédio;
mas o amor, não sendo tudo no mundo,
gera apenas efeitos colaterais.

E como é difícil! E duro!

Tudo consola; vida, morte,
terra, menina, cavalo, instrumento.
Menos o amor, meu caro,
que pra sempre é eterno descontento.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Fuligem fugida

Fuligem fugida.
As árvores e natureza
em todas as suas particularidades
não passam de fuligem fugida.
A madeira, que corre pra longe desse mato
enroscada em caminhões, não passa;
passa pelas fronteiras.

E me preocupo com a flor
nascida do inmundo tempo.

E me preocupo com o macaco, a
passarinha, o
jacaré, o
flamingo.

E me contorço e me reprimo e
minha voz berra surda os ideais
de meu mato córrego, trôpego,
o índio que virou gente
e perdeu sua parte humana.

O comboio todo misturado,
é fogo! na mata! em nós.
E vai, e vão os paus virarem fuligem,
escada, mesa, papel.

Do papel que vos escrevo
ainda resta um pouco o cheiro
da minha fuligem da mata fugida.

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http://www.amazoniaparasempre.com.br/ - é, tento fazer a minha parte.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Escada

Por favor não ouses subir
a escada verde anoréxica
que o poeta criou
com suas próprias mãos
(tesouras) a partir do barro:
não é de teu bico.

Nem de teu interesse.

Ela não te levas
ao gênesis vermelho
ou a um oásis reconstruído.
Geralmente ela nem
começa,
entretida em sua paisagem
de não-ser.

Não verás degraus,
só escamas dum dragão
perdido em pele de homem,
protegido pelo cérebro-máquina.

O caminho é sinuoso:
nem sempre ascende
todavia nunca desce.
Não ri, não sorri,
não pula de
um desfiladeiro problemático
com pedrinhas afiadas ao fundo.

Não existem corrimãos,
só serpentes que te
perseguem,
sentindo teu néctar
intruso,
correndo-te e roendo
a si mesmas.

Não adivinhes;
não penses saber do
que se trata!
A escada é visível
apenas a quem chama,
ora!

(Também tem um nome,
a serpentina escada,
Poesia).

sábado, 6 de setembro de 2008

Soneto de descontento

A estrada fluorescente
segue inflexível
e não se importa
de perguntar-me se sigo.

Sigo debilitado mas sigo,
ainda entre espinhos
recolho minhas mãos
e minhas audácias.

Não percebi o cálice,
a hora tornou-se tarde demais
para teus passos atrevidos!

Acostumei tua voz
às mortes minhas, diversas,
cheias de vida.

Antes do outubro

Desejos de cor vulga e avulsa
fazem-se teus melhores escravos.
derramamos nosso sangue rubro
em nome do pai, do filho,
em nome de nós mesmos.

Derramamos o nome sobre o próprio sangue
envolto de pistas desse mistério mangue
que deixa uma cicatriz entre nós,
em nossa lábia, cantiga e voz.

O frio contorna as quatro paredes
e vem ao teu peito descansar,
teus pequeninos latifúndios
de emoções sinceras mortificadas.

Mas tu continuas intacto,
nesses malabarismos do viver ato,
pois não tens dinamite que chega
para explodir o coração que te integra.

Final Reatado

São capacetes escolhidos a dedo,
vermelhos, violeta e aquarela.

Não sei se ponho
ou se suponho
palavras à boca dos destemidos
destinatários de cartas invisíveis
que insisto em escrever na mão
trêmula diante da velha vela
ardente, consumida pela cera.

Ato as pontas, faço um nó e
puxo a corda. Ela range.

São capacetes emocionais espaciais
dos espaços siderais.

Leva algum tempo para descobrir que
fragalhos reunidos formam laços
inda mais seguros (mas descobre-se).

Os homens enfim vão dormir com
o coração no lado esquerdo do peito.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Minha cruz dourada

Olhos fatigantes
drenam-me o cabelo
e a prudência com carência estabelecida
dentro de sonhos cuidadosamente sonhados,
não são fatigados; são fatigantes.

Transcedendo a verdade e o vidro,
existe uma fina camada de cobre
recobrindo nossos diversos dedos.
Vai ver por isso somos tão estáticos,
vai ver por isso mentimos tanto.

É sob essa luz áurea,
viajando acima de nosso alcance,
que prometemos as
prometidas impossibilidades
daquelas promessas impossíveis
que só te conto à tua ausência,
quando me vêm fazer companhia.

Verdades nós criamos num susto,
a muito custo
dos nossos preços especiais.

Maior quer seja esse perfume,
lufa-lufa e vaga-lume,
eternos aos velhos demais.

Mundo máquina

Vou me fechar pro mundo;
ele não vale meu sacrifício,
minha angústia, sofrimento.
O mundo não vale nem a pena.
Passarei cadeados invisíveis,
como os que seguras
pelos teus crimes imaginários,
pelas minhas mãos materiais.
Assim talvez tenha sossego,
suspiro de vida que
escapa por entre meus lábios
e vai descansar, sabe onde?
Quero me perder em alma branda,
encontrar meu vulto-incógnita
e retirar-lhe seus (meus)
segredos, aqueles que nem
reconheço mais!

Vou me escrever pro mundo,
mas ele não vale a minha escrita.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Por você, eu iria mil vezes

Alguém aqui já leu O caçador de pipas? Eu ainda não tive tal oportunidade, mas ao menos olhei o filme. Excelente, por sinal. Para quem não sabe, trata-se de uma história sobre amizade, mas amizade mesmo, levando a expressão ao seu significado bruto. Daquelas que não conhecem barreiras.

Amizade que, apesar de todas as diversas e perversas dificuldades da vida, continua sempre a mesma, se não mais forte. Onde um está disposto a tomar o tapa na cara pelo seu companheiro. Literalmente. Por quê? Porque você é meu amigo! E precisa de motivo mais sincero?

Achei grandiosa a idéia de uma obra focada na amizade. O que geralmente se vê por aí são pencas de histórias de amor (e que nós adoramos, reconheço). Cai quase como uma bênção essa tal obra, um ar puríssimo para ser respirado. E desde quando amizade também não significa amor?

Amizade essa que é um gesto de devoção verdadeiramente belo. Mas além de belo é, infelizmente, um tanto utópico. Na sociedade competitiva e selvagem de hoje em dia, será que tal nobre valor ainda sobrevive? A nossa sociedade foi ensinada a ser individualista. Seguimos este ensinamento pela pressão social, mesmo sem nos darmos conta.

Enquanto um tem grande sucesso em sua carreira, muitos outros sofrem com más condições de vida. Você tem que vencer na vida. Você. Os outros que se danem, passe por cima deles, é o que dita o mundo. Será que tem que ser mesmo assim?

Acredito que não. Aliás, se você parar pra pensar, seguindo o que a sociedade dita dificilmente você será feliz. Você passa anos fazendo tudo certo, casado, certinho e bonitinho. E? E daí o quê? Você não ganha nenhum nobel. Não sai na capa da Caras. Nada muda. Não digo que você tenha que ser algum tipo de delinqüente, apenas peço que não confunda o que você quer fazer com o que a sociedade diz que você deve fazer.

Com isso dito, acredito que a amizade ainda existe sim. Vai ver não é aquela coisa de que um esteja disposto a se sacrificar pelo outro, mas pelo menos estão aí para conversar e dar algumas risadas. Bons amigos. Ou vai ver então é aquela coisa, sim.

Difícil é imaginar uma vida sem amigos. Solidão. Ninguém para conversar, ninguém para te ouvir chorar, apenas gente que pode se aproveitar de você, que não se importam. Muito difícil viver assim, ao menos para mim.

Mostre aos seus amigos que você está disposto a dar ajuda quando precisarem. Dê um pouco do seu tempo a eles. E não deixe que eles se esvaziem e fiquem invisíveis; o preço de perder um amigo só aumenta com o passar do tempo. Talvez daí você veja que, apesar de todos os problemas, reviravoltas e confusões da vida, algo sempre continua ali, disposto a ajudar, dar apoio e rir - é o amigo.

Um dos bons.


(Originalmente publicado em 12/02/2008)

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Raras rosas rosas

Maciedo gostava muito do Parque. Sempre que tivesse a chance, caminharia pelas passagens às árvores, atravessaria a ponte sobre o lago límpido e calmo, conversaria talvez com vendedores de pipoca, sorvete e outras guloseimas. Sempre que tivesse a chance, ou seja, a todo o momento – Maciedo morava em uma pensão cuja dona caridosa praticamente o acolhera, vivia de doações alheias – por ser de bons costumes, os doadores o consideravam digno das doações – e tinha, então, muito tempo para nada – iria ao Parque. Havia dias que passava quase integralmente ao Parque: saía ainda pela manhã e voltava apenas quando a noite ameaçava encobrir o céu neutro da cidade.

Logo na entrada do Parque um pesado portão de ferro, um tanto quanto deteriorado, mas ainda assim deveras firme, fazia a guarda. Em seguida havia no canto direito jardins maravilhosos, verdadeiros oceanos de flores de diversas ordens. Rosas brancas, rosas vermelhas, rosas laranjas, rosas rosas; tulipas em tons que desafiavam as paletas de cores dos pintores que, volta e meia, por ali se encontravam; girassóis, margaridas, amores-perfeitos, cravos, camélias, violetas e mais uma infinidade de espécies. Maciedo sentia que as flores dançavam em círculos, descreviam rasas piruetas com suas pétalas e sambavam todas suas cores, felizes ao calor do dia.
Em frente havia o lago, o Grande Lago. Na realidade o lago não era grande assim, mas Maciedo não se importava, era bonito até exagerar um pouco as coisas, pelo menos as bonitas. À esquerda, um caminho que seguia contornando todo o Grande Lago, que subia em forma de ponte e que se escondia nas sombras das árvores. Nos finais de semana, eram várias as pipas no céu e canoas alugadas na água mansuetíssima. Mais ao fundo, nas pequenas colinas estáticas, era comum encontrar famílias descansando sobre toalhas xadrezes, vez em quando com cachorros correndo ao seu redor.

Era início de outono, e as folhas miscravam-se vagarosamente em tons laranja-pastéis. No inverno – há de se admitir – as árvores perdiam sua maviosidade e os jardins murchavam, todavia uma neve branca, branquíssima, deixava a paisagem inda majestosa. Logo a primavera não tardava em trazer cor de volta ao cenário, e, no verão – ah! No verão, estabelecia-se no ar uma ordem ímpar e a visão do Parque era plena. Borboletas voariam, levando todas suas virtudes nas asas; pássaros cantariam canções do sol e da lua; libélulas pousariam delicadamente na água; abelhas extrairiam o mais puro dos néctares à rainha; joaninhas e formigas e besouros, todos em uníssona união, levando a natureza em suas costas; eram tempos lindos, os de verão!

Cabia-lhe bem: havia no ar do Parque algo que enchia mais que seus pulmões. Acalmava-o-lhe também das dores da alma. Se o mundo e sua muralha cinza de verdades viscerais impusesse-se diante de Maciedo, ele corria ao Parque, pedia-lhe qual o sentido de ter-se verdades, sentido de tudo na vida. E o Parque respondia.

Na tarde essa outonal, entretanto, havia algo de móvel e úmido lançado na atmosfera, como um mofo penetrando nas paredes de uma casa lilás. Um menino encontrava-se diante do portão de ferro e entregou a Maciedo um folheto. Lia-se: “Empório de Colchões do Sr. Jamusse! Os melhores colchões da cidade, aqui!” E, em letras miúdas, mas de impacto avassalador: “O Empório de Colchões do Sr. Jamusse será construído na área onde hoje é o Parque”. Maciedo ao ler esta sentença estremeceu e sentiu uma faca invisível atravessar-lhe o corpo e alojar-se em seu estômago.

Por muito Maciedo refletiu sobre o assunto: algo havia de ser feito. Ele passou a visitar menos freqüentemente o Parque e passou mais tempo em seu quarto na pensão, indagando-se em busca de uma salvação para seu Parque. Mas nada lhe vinha à cabeça, nenhum milagre oriundo de outras galáxias conseguia alcançá-lo. Estava pasmo, ademais, da indiferença dos outros: e todas as pessoas que freqüentavam com tanta alegria o Parque, como podiam ficar de braços cruzados, imóveis a tamanho absurdo? E os sorrisos lançados na tarde, e a felicidade de haver-se um santuário em meio a uma cidade cujos pecados dormiam nas esquinas? Ele não compreendia a paralisia que corria ao braço do povo; então chorava por eles.

Maciedo resolveu recorrer à medida mais desesperada e honesta que tinha guardado: iria falar diretamente com o Sr. Jamusse, diria que não se devia destruir o Parque e explicaria o porquê disso. Ora! Se os pássaros gorjeiam somente no Parque, onde mais cantarão? Que belezas cantarão? Que valem os colchões, dorme-se no chão! Que vale a matéria, se perde-se a vida, à vida... Mostraria como as árvores conversam, a forma como o Grande Lago observa tudo e todos, irredutível em sua grandiosidade. Diria que o vento verde oés-sudoeste dança nas colinas! Desmascararia enfim a trama, a irreligiosidade em destruir-se o oásis urbano, nem que para isso teria de ajoelhar e suplicar misericordiosissimamente pela trégua.

Maciedo dirigiu-se ao escritório do Sr. Jamusse; pegara um ônibus e viajara um quarto de hora pela cidade, descera de sua condução e andara duas quadras até o prédio verde-água. Subiu alguns lances de escada (não chegou a contá-los) e parou diante duma fatídica porta, onde em letras grafadas no vidro lia: “Sr. Jamusse – Empório dos Colchões”. Abriu-a, mas não pense, leitor, que foi uma invasão: muito pelo contrário, Maciedo havia pedido à secretária que marcasse um horário para que o Sr. Jamusse pudesse recebê-lo. Ele adentrou a recepção cinza, e a secretária – muito provavelmente não aquela com quem falara ao telefone, concluiu – guiou-o até o setor em que Sr. Jamusse trabalhava.

A porta abriu e uma figura pequena, porém espaçosa, sentada numa confortável poltrona de veludo vermelho, encontrou os olhos de Maciedo. Chegou a hora, pensava Maciedo. Abriu a boca para falar – e como tinha o que falar! Era o momento negro que tanto esperava por Maciedo, era o clímax de sua angústia!

Abriu a boca, moveu os lábios, mas a voz não saiu; emudeceu. Maciedo engoliu em seco, paralisado por força maior que ele. Sr Jamusse, detrás de seus óculos grossos e bigode robusto, levantou uma sobrancelha e, após segundos de cruel silêncio, abriu uma gaveta de seu gabinete marrom. Entregou ao moço um pequeno papel; Maciedo colocou-o no bolso esquerdo, e suas pernas começaram a se contorcer. Poucos minutos passaram silenciosos, e Sr. Jamusse nem sentiu a presença de Maciedo na sala. Enfim, a força invisível de outrora moveu Maciedo para fora da sala, do escritório, do prédio. Sua face desdenhava uma forma horripilante; fora vencido? Maciedo retornou à pensão, com a morte desenhada em seu corpo, sem nem pegar condução. Assim, chegou lá no começo da noite, foi até seu quarto e sentou-se na cama. Retirou o bilhete, um tanto quanto amassado, do seu bolso. Nele estava escrito, em letras vermelhas chamativas e um contorno amarelo-ovo: “Ticket Especial: 65% de desconto em qualquer colchão!”.

Maciedo não saiu mais da pensão, passou seus dias deitado na cama, observando o teto e todos seus cantos escuros. Padeceu ali, frio, ao final do inverno. Que lhe houve, perguntavam todos que o conheciam, para sucumbir assim? A dona da pensão respondia: “Veio um fantasma e apunhalou-lhe a alma... oras!”.

Passou logo a primavera e, na metade do verão, o Empório de Colchões do Sr. Jamusse estava completamente construído e funcional.


(Originalmente publicado em 27/07/2008)

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Vamos escrever!

Você pode achar aí, sentado na sua (espero) confortável poltrona - isto para os que se encontram sentados agora - que enquanto o mundo continuar a girar e a Rede Globo continuar a reprisar O Resgate Do Soldado Ryan e O Inferno De Dante durante as férias, sempre haverá aquilo o que comentar, sempre terá algum assunto pedindo algumas linhas, uma idéia surreal palpitando para ser transformada em parágrafos, por mais obtusa que ela seja.

Todavia, o mundo é um lugar com certeza incerto. Da mesma maneira como a Globo pode adquirir novos sucessos cinematográficos para passar em sua programação, quem já sentou deste lado do monitor, teclando letras e sinais alucinadamente e dando tapas na barra de espaço, sabe que nem sempre o sol brilha tão forte assim. Os que supõem que sempre foi fácil redigir um texto fantástico, ou ao menos um regular, estão enganados. Por muito!

É inevitável. Todos que já tentaram juntar algumas palavras em frases e frases em parágrafos e parágrafos em páginas sabem do que estou falando. Sabem como há dias em que simplesmente não temos nada sobre o que falar, nenhuma palavra conseguimos escrever. O momento é apagado em si. Nos falta não só a inspiração, e sim tudo o mais: a vontade, a iniciativa, a emoção. Ficamos atônitos e atônicos ao mesmo tempo, sem nos preocuparmos com o fato de que o relógio está movendo seus braços e não estamos aproveitando o tempo que nos foi dado. Nem nos importamos com isso. O sol por fim cede e o dia desce, redondamente infrutífero.

O culpado disso? Se não houver mordomos nos arredores, podemos repassar a culpa para o segundo melhor bode expiatório de todos os tempos: a nossa sociedade. Toda essa balela de beba Sprite, seja legal, não seja estúpido, toque alguma coisa, escute música boa, leia livros, pegue geral, ame alguém, passe na prova, seja magro, arrume um trabalho, cuidado com assaltos, não seja sedentário, não seja tão magro, arrume seu cabelo, use filtro solar, não seja grosseiro, vá ver mtv, compreenda o dadaísmo, chega de oba-oba, vire comunista, seja gentil, não seja anafórico como estou sendo, assista novela, compre flores, não dê tanta bandeira assim, aprecie o abstrato, tenha sua opinião formada, use camisinha, help save mother earth, vá para a Disney, seja uma metamorfose ambulante, cinco fatorial é igual a cento e vinte mas não é tão refrescante assim tal guaraná: são demasiadas as informações e raro o conteúdo. Não é de se assustar que às vezes estejamos um pouco over-limit, rodeados de futilidades por bombordo e estibordo. Porém a verdade é dura e você há de encará-la. O dia foi insolúvel. Não rendeu nada. Talvez seja você mesmo, que na sua insignificância não conseguiu bolar algo para chocar a sociedade ou para entretê-la, que seja.

Você pode até tentar escrever, mas será em vão, convenhamos. O melhor a fazer é esperar este coma de inspiração e criatividade cessar, ele há de cessar. Podem se passar semanas sem nenhum resultado, e quando você menos esperar toda a sua imaginação ganha uma alta no hospital e sai correndo da UTI. Pode ser ainda que ela não fique lá mais do que algumas horas e, quando você se der conta, já está com seus dedos soltando faíscas no teclado. Sim, do mesmo jeito que sua inspiração foi embora para aparentemente nunca mais voltar, ela volta, aparentemente para nunca mais ir embora. É normal. Escrever tem dessas coisas mesmo, é só não se desesperar quando acontecer com você - e acredite, vai acontecer. Apenas não entre em pânico.

Ah: só não vale abandonar a pobre inspiração lá em coma para morrer.

Daí são outros quinhentos e já é enorme vacilo, o seu.


(Originalmente publicado em 12/03/2008)

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Banho em casa

Hora do banho. Nada mais agradável e relaxante - é hora de deixar a água fazer o seu serviço passando pelo seu corpo, quase que um processo de purificação. Nos sentimos mais leves depois de passar por uma ducha, seja água quente, fria ou morna, seja com música ou com você cantarolando desafinadamente mesmo.

Isto é, se você for tomar um banho em casa. Pois se por um acaso tiver a audácia de tentar banhar-se em outros ambientes, o cenário muda completamente. Aqui fica o aviso: você estará sujeito a toda uma sorte de chuveiros espalhados pelo mundo. Sim, você sabe exatamente do que estou falando, existem chuveiros à solta por aí que nem parecem que foram projetados para o banho. Estão mais parecidos com máquinas de guerra.

Vejamos. Você já deve ter passado pela experiência de tomar banho em algum lugar incomum, como casas dos amigos, hotéis, clubes, casa da sogra e alguns outros ambientes cheios de mistérios e por vezes pérfidos. Pois quem, num ambiente desses, nunca se deparou com chuveiros igualmente pérfidos?

Existem chuveiros que jorram água em um círculo ao seu redor, mas não acertam uma gota em você. Ou então aqueles que jorram um único filete concentrado, e você se vê obrigado a sacudir sua cabeça em todas as direções imagináveis para tomar um banho decente. Também tem aqueles de quais apenas cai uma cuspidela d'água e você, após meia hora debaixo dele tentando inutilmente molhar sua cabeça, percebe que é mais lucrativo render-se ir enxagüar-se na pia mesmo.

Mas nem todos os chuveiros são fracos. Quem nunca suspeitou que alguém dera um tiro em suas costas enquanto estava no box, devido à absurda pressão com que a água era expelida do chuveiro? Esse é o tipo que deixa uma bela marca vermelha no seu corpo ao sair. Ou ainda aqueles redondões que molham tudo num raio de 4m ao seu redor. Pra achar a saída naquele temporal só com bússola, e você sai ofegante do banho. Sem falar dos chuveiros ao ar livre. Em dias de vento forte você tem que perseguir a água que cai, de um lado para o outro, quase que você inventa uma nova dança.

Por fim, temos aqueles cujas únicas opções de temperatura disponíveis são vou virar um picolé e burn baby, burn. Isso quando não é daqueles que um toque ínfimo na válvula reflete em uma diferença de 45° centígrados na temperatura d'água. Temos também aqueles em que a água repentinamente esfria, e você se vê forçado a tomar um banho em tempo recorde (ao menos é ecologicamente correto).

Mas, em meio a todos estes perigos, existe uma saída. Existe um chuveiro em particular que é o melhor disponível no mercado, ímpar em todos os aspectos e que nunca te deixa na mão. É o chuveiro da sua casa.

Com esse chuveiro não tem erro algum, afinal, você já o conhece de outros carnavais. Você sabe de todos os segredos, todos os macetes. Já decorou todos os atalhos. É indiscutivelmente perfeito. É onde você se sente seguro, contente e verdadeiro, afinal de contas, está em casa. Em casa nada pode te ameaçar, nada pode dar errado. Inclusive seu banho.

Tome o seu no seu lar, na sua tranqüilidade.

E não se preocupe comigo. Eu já tomei o meu - e em casa, por obséquio.


(Originalmente publicado em 04/02/2008)