domingo, 28 de setembro de 2008

War

Você, no almoço. Parece que está tudo na mais perfeita ordem. Não está. Não não não, você, no fundo, sabe que alguma coisa está cruelmente errada, há algo de misterioso no ar. De fato, há: quando você menos espera, aparece um ser típico, mas não menos irritante. É uma criatura grotesca, por vezes barulhenta e que, ainda por cima, é voadora. É uma mosca.

Sua primeira reação é de indiferença; deixa ela aí, eu vou é terminar de comer. E a mosca continua rondando, chamando sua atenção. Você já sabe que, mais cedo ou mais tarde, ela há de pousar. Ela pousa. Pousa sobre a mesa, a comida, o prato, você - que a dispersa incansavelmente, com uma chacoalhada do seu braço. A cena se repete algumas centenas de vezes, ela não desiste. Quando você repara, está obcecadamente observando a mosca e ainda sequer tocou na sua comida. É hora de finalizar o inseto incômodo para daí, talvez, finalizar a refeição.

Nesse momento, algumas pessoas tentam, em vão, caçar a mosca com as mãos, sem saber que esta é uma arte restrita aos ninjas. Talvez por preguiça de ir buscar o mata-moscas, talvez por quererem (inutilmente) testar suas habilidades. O fato é que, em algum momento, você irá buscar tal instrumento mortífero. Qual não é sua surpresa ao retornar à mesa e descobrir que, durante sua ausência, seu inimigo se apoderou de seu prato e encontra-se agora passeando nele, feliz da vida. A mosca acaba de lhe propor um desafio, ela lhe chamou para a briga! Agora a situação é pessoal.

Antes de tudo, você a espanta de seu prato - afinal, não seria nada sensato dar uma paulada no seu arroz. Você então espera ela aterrissar, e ela faz questão de demorar. Quando ela enfim desce, você se aproxima, portando corajosamente o mata-moscas em mão. Vagarosamente você leva seu braço e inclina a ferramenta na direção do inseto. Mas, quando você está quase desferindo o seu golpe, bzzz, ela decide ir para mais um city tour na sua cozinha. Você aguarda, ansioso.

Atenção! Ela pousou e agora você não quer mais perder tempo; vai para sua posição, coloca o mata-moscas diretamente sobre o alvo e... PAFT! Aaaaahahahahahahaha, vitória!!! A felicidade que lhe invade, porém, está só de passagem e logo lhe abandona, tão logo você vê que não há mosca alguma na bancada - que dirá uma morta. A pergunta velozmente formulada sobre onde está o cadáver é quase tão rapidamente respondida por um barulho no ar. Um bzzz estridente, que delata uma verdade inconveniente. Dois a zero para o time visitante.

Você colhe do chão o que sobrou de sua honra, junta os cacos de sua dignidade e decide que é hora de dar um fim a todo este oba-oba desenfreado. Toma na mão mais uma vez seu cansado mata-moscas e vai à luta. Ela está agora na beirada de sua mesa. Toda sua experiência lhe diz para não afobar-se, ainda assim é difícil resistir a um golpe, agora! Não, vamos com calma. Você fica lá, encarando, nervoso. O suor já começa a aparecer em seu rosto. A mosca continua inerte. Ela não desconfia de nada, você pensa.

Você passa a se aproximar, lentamente, cuidando para não fazer barulho algum - até já descalçou os chinelos. Chega na posição correta para aplicar o ataque, enfim. O nervosismo o corrói: será que devo chegar mais perto, ou daqui está bom? Será que ela vai fugir se eu me aproximar? Será que ela vai fugir se eu não me apressar? Em meio às dúvidas que lhe dão perguntas nas respostas e a pressão de toda uma sociedade, você decide agir mais e pensar menos. Segue um gesto súbito e selvagem.

PLAAAFT!!!

Você arrisca uma olhadela no resultado. O inimigo de outrora cai para fora da beirada da mesa e descreve um zigue-zague no ar, enquanto pirueteita em direção ao solo. Tudo num instante tão intenso que poderia durar horas. Quando atinge o chão, o inseto já está atordoado, acabado, exaurido.

Você olha para ele, olha para o mata-moscas e novamente volta a encarar seu rival; um misto de culpa e dever cumprido casam dentro de você. Mais o segundo do que o primeiro, você admite. Ao vencedor, as batatas (podem ser aquelas que se encontram no seu purê, mesmo). Soturno, leva o prato de comida para dentro do microondas - se a refeição esfriou, ao menos foi por uma boa causa - e suspira, aliviado, enquanto observa o timer do aparelho se aproximar do zero.

War is over.

For now.


(Originalmente publicado em 16/02/2008)

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