quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Raras rosas rosas

Maciedo gostava muito do Parque. Sempre que tivesse a chance, caminharia pelas passagens às árvores, atravessaria a ponte sobre o lago límpido e calmo, conversaria talvez com vendedores de pipoca, sorvete e outras guloseimas. Sempre que tivesse a chance, ou seja, a todo o momento – Maciedo morava em uma pensão cuja dona caridosa praticamente o acolhera, vivia de doações alheias – por ser de bons costumes, os doadores o consideravam digno das doações – e tinha, então, muito tempo para nada – iria ao Parque. Havia dias que passava quase integralmente ao Parque: saía ainda pela manhã e voltava apenas quando a noite ameaçava encobrir o céu neutro da cidade.

Logo na entrada do Parque um pesado portão de ferro, um tanto quanto deteriorado, mas ainda assim deveras firme, fazia a guarda. Em seguida havia no canto direito jardins maravilhosos, verdadeiros oceanos de flores de diversas ordens. Rosas brancas, rosas vermelhas, rosas laranjas, rosas rosas; tulipas em tons que desafiavam as paletas de cores dos pintores que, volta e meia, por ali se encontravam; girassóis, margaridas, amores-perfeitos, cravos, camélias, violetas e mais uma infinidade de espécies. Maciedo sentia que as flores dançavam em círculos, descreviam rasas piruetas com suas pétalas e sambavam todas suas cores, felizes ao calor do dia.
Em frente havia o lago, o Grande Lago. Na realidade o lago não era grande assim, mas Maciedo não se importava, era bonito até exagerar um pouco as coisas, pelo menos as bonitas. À esquerda, um caminho que seguia contornando todo o Grande Lago, que subia em forma de ponte e que se escondia nas sombras das árvores. Nos finais de semana, eram várias as pipas no céu e canoas alugadas na água mansuetíssima. Mais ao fundo, nas pequenas colinas estáticas, era comum encontrar famílias descansando sobre toalhas xadrezes, vez em quando com cachorros correndo ao seu redor.

Era início de outono, e as folhas miscravam-se vagarosamente em tons laranja-pastéis. No inverno – há de se admitir – as árvores perdiam sua maviosidade e os jardins murchavam, todavia uma neve branca, branquíssima, deixava a paisagem inda majestosa. Logo a primavera não tardava em trazer cor de volta ao cenário, e, no verão – ah! No verão, estabelecia-se no ar uma ordem ímpar e a visão do Parque era plena. Borboletas voariam, levando todas suas virtudes nas asas; pássaros cantariam canções do sol e da lua; libélulas pousariam delicadamente na água; abelhas extrairiam o mais puro dos néctares à rainha; joaninhas e formigas e besouros, todos em uníssona união, levando a natureza em suas costas; eram tempos lindos, os de verão!

Cabia-lhe bem: havia no ar do Parque algo que enchia mais que seus pulmões. Acalmava-o-lhe também das dores da alma. Se o mundo e sua muralha cinza de verdades viscerais impusesse-se diante de Maciedo, ele corria ao Parque, pedia-lhe qual o sentido de ter-se verdades, sentido de tudo na vida. E o Parque respondia.

Na tarde essa outonal, entretanto, havia algo de móvel e úmido lançado na atmosfera, como um mofo penetrando nas paredes de uma casa lilás. Um menino encontrava-se diante do portão de ferro e entregou a Maciedo um folheto. Lia-se: “Empório de Colchões do Sr. Jamusse! Os melhores colchões da cidade, aqui!” E, em letras miúdas, mas de impacto avassalador: “O Empório de Colchões do Sr. Jamusse será construído na área onde hoje é o Parque”. Maciedo ao ler esta sentença estremeceu e sentiu uma faca invisível atravessar-lhe o corpo e alojar-se em seu estômago.

Por muito Maciedo refletiu sobre o assunto: algo havia de ser feito. Ele passou a visitar menos freqüentemente o Parque e passou mais tempo em seu quarto na pensão, indagando-se em busca de uma salvação para seu Parque. Mas nada lhe vinha à cabeça, nenhum milagre oriundo de outras galáxias conseguia alcançá-lo. Estava pasmo, ademais, da indiferença dos outros: e todas as pessoas que freqüentavam com tanta alegria o Parque, como podiam ficar de braços cruzados, imóveis a tamanho absurdo? E os sorrisos lançados na tarde, e a felicidade de haver-se um santuário em meio a uma cidade cujos pecados dormiam nas esquinas? Ele não compreendia a paralisia que corria ao braço do povo; então chorava por eles.

Maciedo resolveu recorrer à medida mais desesperada e honesta que tinha guardado: iria falar diretamente com o Sr. Jamusse, diria que não se devia destruir o Parque e explicaria o porquê disso. Ora! Se os pássaros gorjeiam somente no Parque, onde mais cantarão? Que belezas cantarão? Que valem os colchões, dorme-se no chão! Que vale a matéria, se perde-se a vida, à vida... Mostraria como as árvores conversam, a forma como o Grande Lago observa tudo e todos, irredutível em sua grandiosidade. Diria que o vento verde oés-sudoeste dança nas colinas! Desmascararia enfim a trama, a irreligiosidade em destruir-se o oásis urbano, nem que para isso teria de ajoelhar e suplicar misericordiosissimamente pela trégua.

Maciedo dirigiu-se ao escritório do Sr. Jamusse; pegara um ônibus e viajara um quarto de hora pela cidade, descera de sua condução e andara duas quadras até o prédio verde-água. Subiu alguns lances de escada (não chegou a contá-los) e parou diante duma fatídica porta, onde em letras grafadas no vidro lia: “Sr. Jamusse – Empório dos Colchões”. Abriu-a, mas não pense, leitor, que foi uma invasão: muito pelo contrário, Maciedo havia pedido à secretária que marcasse um horário para que o Sr. Jamusse pudesse recebê-lo. Ele adentrou a recepção cinza, e a secretária – muito provavelmente não aquela com quem falara ao telefone, concluiu – guiou-o até o setor em que Sr. Jamusse trabalhava.

A porta abriu e uma figura pequena, porém espaçosa, sentada numa confortável poltrona de veludo vermelho, encontrou os olhos de Maciedo. Chegou a hora, pensava Maciedo. Abriu a boca para falar – e como tinha o que falar! Era o momento negro que tanto esperava por Maciedo, era o clímax de sua angústia!

Abriu a boca, moveu os lábios, mas a voz não saiu; emudeceu. Maciedo engoliu em seco, paralisado por força maior que ele. Sr Jamusse, detrás de seus óculos grossos e bigode robusto, levantou uma sobrancelha e, após segundos de cruel silêncio, abriu uma gaveta de seu gabinete marrom. Entregou ao moço um pequeno papel; Maciedo colocou-o no bolso esquerdo, e suas pernas começaram a se contorcer. Poucos minutos passaram silenciosos, e Sr. Jamusse nem sentiu a presença de Maciedo na sala. Enfim, a força invisível de outrora moveu Maciedo para fora da sala, do escritório, do prédio. Sua face desdenhava uma forma horripilante; fora vencido? Maciedo retornou à pensão, com a morte desenhada em seu corpo, sem nem pegar condução. Assim, chegou lá no começo da noite, foi até seu quarto e sentou-se na cama. Retirou o bilhete, um tanto quanto amassado, do seu bolso. Nele estava escrito, em letras vermelhas chamativas e um contorno amarelo-ovo: “Ticket Especial: 65% de desconto em qualquer colchão!”.

Maciedo não saiu mais da pensão, passou seus dias deitado na cama, observando o teto e todos seus cantos escuros. Padeceu ali, frio, ao final do inverno. Que lhe houve, perguntavam todos que o conheciam, para sucumbir assim? A dona da pensão respondia: “Veio um fantasma e apunhalou-lhe a alma... oras!”.

Passou logo a primavera e, na metade do verão, o Empório de Colchões do Sr. Jamusse estava completamente construído e funcional.


(Originalmente publicado em 27/07/2008)

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