terça-feira, 31 de março de 2009

Canto calmo

Canto calmo pois aprendi que o canto é meu destino.
Colho lento as coisas derrubadas por aí.
Vejo róseos braceletes em certos braços distantes.
Canto sobretudo pelo momento e por seu brilho.
Perco olhares distraídos neste céu de descobertas.
Curiosas estrelas vêm me contar dos séculos.
Escondo-lhes meus segredos: entenderiam bem demais.
Construo o meu palco conforme moldo meu destino.
Sou uma marionete? Seria um fantoche? Talvez,
mas posso controlar-me, e meus sorrisos.
Escondo-me pois o tempo perdoa os cruéis.
Conserto-me buscando a volta à vida.
Canto pelas avenidas meus estilos de outrora.
É só vento? Mas não há vento algum.
D'alguma forma compenso o que nunca tive.
Mas como? Colho gestos já em absoluto desuso.
Sei só que daqui nada levo, fora os olhares,
o espaço nas janelas
e o carinho sublime, porém existente e eterno,
desde que o se queira.

Pequeno mar

O mar serve de mensageiro, e anuncia
meu retorno. Sou navegante no escuro
e no escuro estou.
À manhãzinha, deixo meu adeus, até logo...
até amanhã, e o amanhã chega nunca.
O quão triste é deixar meu amor
aos caprichos alheios?
Na praia cinza destróem-se de vez
o total de meus anseios.

E no sal repercute
no sol queima, lenta,
a acidez do longe.

sexta-feira, 27 de março de 2009

Há poesia

Há poesia em tudo.

Há poesia no sapato,
no sol e no ladrilho.

No cachorro, há poesia.
No gato; na abelha
e nos velhos sabores também.

Há poesia nas metralhadoras
e nos tambores de guerra, agora
rufando, comunicando o poema.

No amor, na invasão,
no invisível, nas marés
e no casaco.

Pura vertigem, essa terra,
ao se converter à vontade
do poema.

Poesia da madrugada, sub-reptícia,
do raiar e da lã:
bom que é vê-la aí na entrada
e tudo se acerta
e meu coração agita e aceita
a calmaria desse agora.

Há poesia, é certo, no verão
e a cor da estação
é pra onde sigo ao final da música.

Certamente há poesia no salão municipal
e na biblioteca pública.

Ouve, meu amor: há
poesia agora, no focinho do lobo.

Para lá iremos ao anoitecer.

Nas crianças há muita poesia
intocada, pueril, montada.

A poesia escorre
pelo lábio beijando lábio
pelo beijo beijando beijo
e num momento fez-se luz
fez-se saída
fiz-me ambiente e éter.

Quilos e quilos de poesia
dando adeus, amarrados no navio,
sobre o escorregar do convés.

No abuso, a poesia secreta.

Na caneta, a poesia já morta.

Há poesia em quase tudo.

No toc do salto alto
no ah! da vida
no ai da morte
no calor da cama
na cama gelada aberta
e na altura do que vejo.

Que vejo? Vejo no código
e na resposta, mesma gente,
que na ciência existe
e no poema permanece. E se perde.

quarta-feira, 25 de março de 2009

Poesia pra nada

É só um monte de tempo
deixado na varanda
penetrando vento
enchendo de luz o cabelo.

É só tempo me chamando à porta;
vem viver.

Tempo passando correndo
voando fugindo e minha mão
muito minha, a mão não
se conhece na sombra.

Um cacho de terra,
uma volta na metrópole
e meus olhos vão brilhar.

Vou pintar. Vou escrever
palavras em fogo. E no meio
da nuvem, te ver branca
pra esvoaçar a memória
e perder o tempo sujo
na madeira, no corrimão.

É tempo demais para alguém,
para mim. E valho mais agora!

domingo, 22 de março de 2009

Fotografia

Sou o abraço do braço do relógio
sou a torneira pingando rouca
sou canto à orelha do livro
(quem me dera ter um livro
agora!).

Sou o carinho de veludo dos amantes.
E a pólvora. E pó. E rastro
de vida conquanto se vive.

Sou a formiga invencível escalando
este homem. Sou fé. Estou nu.

Sou bem poeta e a letra que me falta
desaguou rio acima, rio abaixo.

Sou cactus
sou planta imensa imensa imensa
tenho vida tenho fome tenho
mas não tenho amor amar não.

Sou cores translúcidas várias
faça inverno faça verão
a dor de um só coração
não é pret' e branca.

No esquema, sou uma alavanca
que se puxa pra parar de vez
o trem da minha vida.

quarta-feira, 18 de março de 2009

Breve momento na cozinha

Entrou na cozinha e ligou a luz. Após algumas piscadelas, as lâmpadas enfim acenderam. Foi andando em direção ao balcão: estava mesmo muito cansado. Há quantos dias não dormia deveras? Ficava acordado lendo ou escrevendo ou então simplesmente evitando dormir, e não sabia bem certo pra quê. Mas agora pesava a sua cabeça, pesava demais, e suspirou.

Chegou até a maquininha de café, posicionou um copo de plástico abaixo da abertura e apertou o botão. Relaxou um pouco mais ao ouvir o típico som do copo enchendo. "Caramba", pensou consigo, "O que pode ser mais abstrato do que uma 'maquininha' de café?".

Pegou o copo e bebeu. Estava ruim. Mas bebeu. Abriu uma das gavetas acima de sua cabeça e alcançou uma fatia de pão. Pensou por um momento e passar mel e deixá-la mais apetitosa, mas decidiu-se de que o esforço era pordemais grande. Deu uma mordida, o pão puro. Tomou mais um gole. E, de súbito, sorriu. "Cara", disse em voz alta para ninguém em particular, "Ela é como um caleidoscópio".

Comeu mais um pedaço do pão e saiu da cozinha. Ainda sorrindo.

domingo, 15 de março de 2009

Claro dia

O sol bate à porta:
acorda Juliano que é dia.
Suspeitoso ergo o olho sobre o apoio da janela.
Claro! que é dia, diazíssimo no mundo.

Me rendo às abelhas, ao frevo
das pedras nas calçadas. Às
sombras dos passageiros esperando
autorizar-lhe o tráfego dos seres.

Um teor de doce e de flor
oscila no vento e ensina
mais que ver - reparar.

Arrisco um passeio. Há uma camada
de brilho no bairro assim cedo!
Há restos de madeira e vestígios
do amor da noite ultrapassada.

Há um ócio adjetivo, disfarçado
no gesto lento
do abrir dos braços e do seio
de vossos irmãos.

Há enfim uma breve respiração aliviada
de um ar verdipuro artefato.

Luminosa cidade, eis uma lição
disposta a ser eternizada;
passada a noite me devolves à vida,
não obstante, cobras nada!

Questões e nada mais

Todos nós
atirados e estirados no indivisível
mesmo varal, sob a secura do sol
queimante, que fazemos, se não secamos?

Cada um de nós
com a particular cadeira coletando
rachaduras na varanda e na cama
abandonada, que somos, se não rachamos?

Nós e apenas nós
e o sujo relógio catequizando a
todos com o badalar de seu
sino, que juntamos, se não badalamos?

(muito embora agora me badalo todo:
é meu coração pedindo trégua, altíssimo)

Eu somente
furando as quatro paredes
banidas e sumidas de meu
cômodo, que sopro, se não bano?
De quê sofro, se não amo?

quarta-feira, 11 de março de 2009

Aprendi com as tartarugas

Das tartarugas herdei
esse casco que me envolve
de doce jeito leve.

Nas tartarugas estudei
o calmo olhar, a experiência
do sorriso mudo e sincero.

Com tartarugas aprendi:
se quero durar duzentos anos,
se vai um passo por vez.

De tartarugas, conheci
a conquista da terra e
do mar, pacientosa.

Observando tartarugas
percebi como ter amado
serviu pra me enganar.

Interrogando tartarugas
descobri a felicidade espremida
no botão de margaridas.

Em tartarugas achei
a modéstia entrerrotada,
esta rara matéria-prima.

Por tartarugas usei
meu esforço último no mundo
insuperável e já sem gosto.

Um coral de tartarugas me esclarece:
vai Juliano! que da vida o sentido
é a grama rolando verde na colina
ao som do vento e do musgo.

sábado, 7 de março de 2009

Rápida reflexão antes da aula

(Certas vezes a poesia e o poeta também são reais)


Um poeta não precisa da pena alheia.
Tal como uma aranha na aurora,
tenta com esforço tecer sua teia em luz.
Sou poeta armado na fé,
no lápis, na dor e na ternura.
Um poeta não precisa de tempo.
O tempo constrói a própria estrada
do poeta errante.

(Olho o relógio: três minutos: vou subir).

O dia lúcido

Duzentos deuses vieram ao meu quarto hoje.

Me analisaram, investigaram.
Me chacoalharam, sopraram o pó do nó
que existe no mecânico gesto
de erguer o braço prisioneiro.

Este gesto era o que mais temia.

E cada palavra que solfejavam
viajava nua e crua no espaço,
inutilmente.

Duzentos deuses só vieram me contar
que as gaivotas, os pelicanos
e as sementes também sofrem.

Conversa fiada; os fitei
com olhos ondulados e disse:
nenhuma dor é tão sozinha
para que doa mais que a minha.

Consentiram, tristes. Isto foi hoje...

quarta-feira, 4 de março de 2009

Cotidiano

Ergues teu mínimo navio
armado na ponta do dedo.

Olhem!

Mas o único olho é
o de McCartney, sorumbático
e pulsando vida
chorando rios de vida
despejando vida pegajosa
na rósea espiral do disco.

A maleta azul te encurrala
e te escraviza: vais trabalhar,
escavar minérios, carregar
minérios, por eles serás soterrado
sufocado por tanto peso burocrático
que nada faz, além de minerar.

Tua existência é incerta,
é trifásica e irresponsável.
Em tua casa, os não-livros
de Rimbaud
de Baudelaire
organizam o mofo da vazia prateleira.

Ainda assim, com tantos poréns colecionados,
tens à noite a coragem de abrir A rosa do povo
e com uma vírgula de esperança aspira
ser sorvido de frases mastigáveis de tão duras.

quem sabe te transmutas em rosa!
Já que ao pó não retornarás.
E ao povo nunca pertenceste.

domingo, 1 de março de 2009

Resposta

O que são as estrelas fingidas
em seus banhos de luz entretidas
sussurrando brancamente a
essência do espaço,
o que é o preto no marfim,
o óleo n'água, o dente roendo
dente, a brasa incandescente,
o revólver engatilhado, a náusea
na fala, o espinho venenoso,
o mundo na contra-mão

senão

eu, platônico,
Enviasado por teu alexandrino ato do não-amar?

Ao poeta

Poeta, amigo longo,
suas lágrimas são puro mel
vêm dos olhos e caem do céu
conta-me qual a sensação
de carregar um sentimento do mundo
na ponta grafitosa do lápis
de anis, anos se passam e tu
pendes a passar. Mas não
é escolha, brancos e humildes
teus sonhos escrevem-se.
Ao poeta amigo, guardo estes versos errantes
na vontade de que o chão flutue por instantes
onde nomeio-te rei e hei
de te prometer meu corpo
para versificar-me, eu topo!
Só horrores e amores guardei
em paz e fortuna
a meu amigo poeta, e grosseira
a noite já nasce diurna.

Carlos, tu nesta bolha de modéstia,
eu escrevo este painel esperançoso
na bruma, no breu, na areia e
na duna, a ver se te encontro.