terça-feira, 7 de outubro de 2008

O cravista

Sentado em seu pequeno banco, o cravista observava seu instrumento, imóvel, logo à sua frente.

Morava sozinho na Rua dos Frievos, nominho esquisito: não sabia de onde viera muito menos o significado; quanto à cidade, o nome já se perdeu no tempo. Na rua de pedra as árvores altas projetavam sombras compridas e relaxadas à tarde. Nessas tardes, via de sua janela a luz dourar toda a via, em perplexidade... (voltaremos à janela logo mais). De seu pequenino prédio - antigo, tinta vermelha já descascando – era o único inquilino verdadeiro. Outros moradores duravam no máximo umas sete semanas, mas ele não sabia o porquê disso: agradava-o-lhe muito. O cravista, enfim, respondia por Érico.

Pois Érico, sentado em seu pequeno banco, observava seu instrumento. À sua esquerda, a janela: perdão, leitor, mas esta merece uma curta menção.

Tratava-se duma grande janela de vidro límpido, embora já fosse de anos. Vinha a descer do teto até uma pequena altura, onde acabava. Sua visibilidade era plena. Dela via-se as pessoas, os animais, as árvores, os gestos e os sentimentos; nada que escapasse de sua lente azul; nada que conseguisse correr longe da verdade filtrada por este vidro brilhoso e luminoso. Érico tinha segurança de que ela ligava-lhe ao mundo muito mais do que a porta rangente de sua morada. Fosse morrer um dia, queria dela ser defenestrado, apesar da baixa altura do seu segundo andar.

Então Érico, sentado em seu pequeno banco, observando seu instrumento; então Érico ouviu um ruído por detrás do cravo. Observou o quarto no escuro das coisas... Mas antes ao ruído, vamos ao quarto.

Nada muito extravagante. Ao abrir a porta, dava-se de cara com sua cama, sempre polida e arrumada. À esquerda ficava a janela, e transversal a esta seu cravo. Podia assim tocá-lo e, sem muito esforço, observar o mundo através de sua janela apenas voltando a cabeça para o lado. Na parede da porta, também no canto esquerdo, uma pequena estante onde realizava escritas, anotações. Acima dessa, uma coleção de livros. Pois era este seu quarto, iluminado à vela e aceso em silêncio. Voltemos, paciente leitor, ao ruído.

Érico que sentara em seu pequeno banco e observara seu instrumento agora fita o ruído. Este ruído que virou vulto que se tornou gente e de gente acabou num anjo. Anjo? É, tinha asas de anjo a criatura, mas as asas eram negras. Os olhos, contudo, brilhavam em pureza e respeito. Vestia um robe preto com um laço amarrando-o na cintura. Tinha o cabelo branco e estava descalço. Érico não pode deixar de surpreender-se e de súbito levantou e encarou-o. Este “anjo” apenas olhava-o de volta, com um sorriso leve e frio na boca.

“Que és tu, criatura?”, perguntou Érico em susto. “Não és anjo...”

“Não”, respondeu ele. Ele, que era um anjo caído, mas não dar-se-ia ao trabalho de explicá-lo; não era do interesse do momento; também não era dos homens de entender a casta angelical. “Chamo-me Lai e vim aqui ajudar-te...”

“Lai?” repetiu Érico com dúvida.

“Isto!” disse Lai rápido e oportuno. “Vim ajudar-te, escuta-me, vamos... Vim até cá mostrar-te o mundo.”

“Não compreendo”, respondeu Érico, com a cara em sigilo e cautela.

“Pois vais. Dá-me cá tua mão e fecha teus olhos”, disse Lai, e estendeu seu braço esbranquiçado e abriu sua palma virada para cima. “Vens?”

Érico viu os olhos de Lai cintilarem. De repente a casa estava fria e compacta no espaço...

“Asno!” reclamou Lai. Érico, irritado e confuso, estendeu a mão e, com tremor e força, uniu-a a de Lai. Cerrou os olhos.

Tão rápido o fez, foi impulsionado com tremenda força para cima; só percebeu isto após um momento; pensou que havia quebrado sua cabeça no teto, mas em surpresa deu-se são e vivo. Abriu os olhos: via nuvens, nuvens gigantes, frio. Não compreendia.

“Eu disse para fechar os olhos, criatura!”, brandiu Lai, e de súbito Érico obedeceu. “Vais morrer se espiar... Não é dos homens calcular a dimensão disto.”

“Que seja o que for isto!”, pensou Érico consigo. Seus ouvidos zuniam e reverberavam, seus sentidos misturavam em sua mente. Porém, justo quando a sensação tornava-se insuportável, ela parou.

“Cá estamos, abre teus olhos agora, criatura de forma” explicou Lai. Érico mais uma vez obedeceu-o com cuidado e abriu. Encontrava-se num extenso gramado, com montanhas ao redor, ao longe. Flores e árvores existiam em bandos, na distância dos morros. As nuvens que vira não estavam mais ao céu: o dia limpo. “Vê agora o espetáculo do mundo...” sussurrou Lai.

Então ele viu. Viu o desfile dos povos: egípcios, chineses, gregos, as bandeiras que carregavam em seus peitos, viu os filhos da própria terra. Viu armas e armaduras das guerras, viu as próprias guerras: a glória da vitória e o entalo da derrota. Viu na cara de vários o fim, ou um começo, ou os dois. Estes logo passaram, pois eram passageiros, e deram espaço a Gaia. A Mãe que carregava mil flores nos braços, a beleza do fogo nos olhos, os ventos verdejantes nas pernas, o líquido da vida ao ventre, a nova vida, a vida impossível de ser mais vida, em sua forma mais viva. Vida na forma de vida. Se Gaia sorria em trovão, cantava em calmaria, e era magnífico o espetáculo. A Mãe cortou o solo e dele saiu a Alegria, que roubou a si a luz das estrelas escondidas sobre o céu claro e explodiu em dimensão e limbo. Seguiu com a Dor, e Érico sentiu a dor, roeu a dor, a expressão tão perdida e ainda assim leve. Ela ergueu a voz em náusea e enfim virou todo o azul dos lagos. Prosseguiu o Amor, e sua face era tão bela e verdadeira que Érico não pode evitar de apaixonar-se por ele. Mas logo o Amor virou-se de costas e surgiu a donzela da Paixão, em faísca e consumo: correu os céus e a terra pintando-os de cores invisíveis aos olhos. Érico ficou estupefato. Desfilaram ainda a Modéstia, se fazendo menor do que era; o Engodo, se fazendo maior do que era; o Ciúme, o Desejo, a Luxúria, a Honestidade. Cada um em sua beleza da forma, eu seu estilo inconfundível e intangível. Passaram-se os Anos, os Séculos, apareceu o Tempo: foi a festa do Universo. Apareceram as Galáxias, cresceram em supernova até que viraram grampos de luz, alfinetes de luz. Surgiram os Deuses, em seus poderios e pompas, durante raios e chamas, Anubis, Thor, Zeus. Para enfim surgir o Homem, tímido e impessoal, detrás das sombras. E Érico teve de se aproximar muito do vulto até notar que o homem a sua frente era Érico.

Então num momento ínfimo a luz e o espaço foram sugados num vazio infinito, e Érico viu-se no meio de um estupendo nada. Estupendo! Não pisava, tampouco caía, e também não flutuava. Achara seu ponto neutro. A seu lado, Lai estava sério e caricato. Ainda vale lembrar, leitor amigo, das palavras que Lai compartilhou neste momento:

“Tu viste o mundo, criatura.”

“O que dizes?”, indagou Érico em cólera e fraco.

“Viste a ordem das coisas... Sabes do passado, conheces teu futuro... Viste o mundo como ele é sem as lentes da realidade... Realidade! Esta só serve para ofuscar tua visão!”, Lai falava em aspecto quase rindo, quase sério.

“E tens motivos para mostrar-me isto tudo?”, perguntou Érico mais sério que Lai.

“O mundo só merece ser mundo enquanto ainda houver quem o veja... Ora! Agora fecha os olhos, criatura!”, disse isto e evaporou, sem a chance de Érico da resposta, numa fumaça finíssima, muito branca.

Érico obedeceu sem pestanejar. Seus ouvidos quase explodiram, sua cabeça girava em contusão estranha e aborrecida. Enfim o mal-estar ou o não-estar cessou, e ele abriu as pálpebras.

Érico encontrava-se sentado em seu pequeno banco, observando seu instrumento, imóvel, logo à sua frente.

1 comentário(s):

Anônimo disse...

Fiquei um tempo sem aparecer e (meio que) caí num conto que merece 6 estrelinhas simpáticas.