quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

O ponto, minha vida

“O ponto!” berrava o homem como podia, do centro da Praça, em pé ao lado da estátua, fazendo-se grande e imponente. Era decerto um andarilho qualquer, a julgar-lhe as vestimentas, mas tinha um aspecto de higiene ímpar no rosto; parecia iluminado. Moraria ali mesmo, na Praça Giramundo? Não convém sabê-lo agora. Na esperança de ser eloqüente, ele simplesmente retomava seu discurso:

“Há um ponto onde...”, contudo não havia uma alma só que lhe prestasse atenção. Todos seguiam indiferentes, alguns apressados carregando pastas e maletas, olhando discretamente o relógio, silenciosos e distantes, mergulhados em suas vidas semanticamente idênticas. Provavelmente o andarilho estaria frustrado e até exaurido, mas ele não desistia:

“O ponto! Escutem, todos! Imaginem o espetáculo... ora, ora... aproximem-se e hei de explicar-lhes do que falo. Não é insanidade, vos juro!” enfim um considerável grupo de pessoas estava começando a ouvir-lhe, porém sem levar muita fé, fosse lá o que diria (foram pela beleza da retórica, decerto). O homem, vendo seu público já um tanto ansioso, prossegui a oratória:

“Imaginem por um momento, cidadãos! Há um ponto onde a chuva acaba e a terra adiante está seca. Imaginem... que cena linda! Magnífica! Magnificentíssima! De um lado, a chuva, cai chuva fina, cai chuva forte... do outro, Magia: seco! Seria um espelho? Seria ilusão? É o ponto que vos falo...” o homem parecia dirigir uma ópera, movia seu corpo harmonicamente para os lados, sorrindo pacificamente. “Se estou em chuva, estendo meu braço e sinto apenas o ar... ah... que sentimento de mundo incrível, incomparável... divino! O frio e o quente unidos! Ah, uni-vos! Compreendem? É a Magia!”.

“Não compreendo”, falou um moço em meio da massa, mocinho de olhos pequenos protegidos por um par de óculos. “Quando chove na cidade, chove na cidade toda. Não é possível que a chuva tenha um fim.” “Não, não mesmo” concordou uma mulher de cabelos longos, visto a oportunidade de se manifestar. “Não faz o menor sentido; tu aí à estátua mentes, calúnia! És louco, por acaso?”, e riu de sua condição.

As pessoas lentamente foram se afastando do homem, agitadas, algumas rindo, murmurando e reclamando sobre a “Perda de tempo que passei a escutar esta praga delirar!”. O homem tentou chamá-las de volta, em vão, “Voltem, voltem! Por favor. Por favor...”. Pôs-se a chorar quieto, sentado, a cabeça entre os joelhos. Não cria que alguém o tivesse levado a sério. Mas havia alguém na multidão que o fez: eu. Era jovem, é verdade, e a chaga da mocidade é crer que tudo pode funcionar como quisermos. Mas não foi por isso que acreditei nas palavras do andarilho. Foi algo superior, incompreensível, que fez com que fosse até lá e falasse-lhe:

“Acredito no senhor. Acredito em sua Magia”, tampouco as palavras ele ouviu, mirou-me primeiramente incrédulo, então sorriu, riu, gargalhou alto. As lágrimas eram agora de alegria. Recompôs-se, ergueu suas mãos até meus braços e disse-me:

“Sim! Que dia feliz, meu amigo! Pois saiba que hoje uma lição aprendeu, leva-a na vida! É meu pedido. Não faça como os demais, olhe para eles... as almas sujas, abandonadas... não! Resta esperança nesta terra; resta-a em você. Agora corre, vai! Em busca das águas, em busca do ponto!”

E então fui. Fui passar minha vida nessa idéia. Sempre que via a chuva escorrer as gotas pela janela de meu quarto, saía correndo na rua atrás do tal ponto. Às vezes me perdia, quase sempre voltava sujo, exausto. Nunca encontrava o local, mas sabia estar por aí me esperando. Cada vez era maior a esperança, afinal, tratava-se do ponto! Onde se existe e não existe simultaneamente, ah! Magia! Fantástico, estupendo! Será que o tempo lá corria? Seria também colorido? Seria doce? Que tal, que seja!

Os anos se passaram, mas nunca desisti de minha busca. Tal ilusão, tal barreira finíssima porém intransponível sempre me pertenceu, assim como a pertenci. Mas nem tudo são maravilhas neste mundo: sou velho agora. Com a idade, vem também a doença, os males, é verdade. Encontro-me agora numa manhã ensolarada; deitado à cama, observo pela janela o mundo lá fora; crianças ao verde, ao parque, carros, pessoas sorrindo, cumprimentando, interagindo umas com as outras; vida. Amam-se? Quem sabe, quem sabe sim, assim espero. Mas e eu?

Sinto que expiro hoje à noite. Sim, nunca me falhou a intuição dos bons. De forma semelhante nunca encontrei o ponto, meu ponto. O homem da Praça Giramundo que provavelmente já não pertence a esta terra, não ouvi mais dele. Fora sepultado?... Ah! Mas que linda! Que linda esta visão que agora me dei de presente. Entendi-lhe, compreendi o homem! Ah, entendi. Não me importa achar o ponto! O importante é a busca, a emoção que lhe dei. E como dei, como! A devoção toda, minha eterna luta solene e quieta, muda, ah, que momento único este, agora... é a Magia!

Aqui ponho-me a chorar, transborda-me completamente o coração. Não entendo; não requer entendimento. Expiro hoje, sim. Morro feliz; tive uma vida perfeita. Reflito: quem sabe era este o ponto?

Hoje à noite, logo após minha passagem, choverá. E amanhã os céus anunciarão os louros de um arco-íris transfigurado. Sim, sim, a intuição dos bons nunca falha! É a Magia!

2 comentário(s):

mills disse...

é a tua segunda história onde alguém morre no final.
mas gostei! parabéns (:

disse...

ah, muito bom, mesmo! quero um exemplar do teu livro, autografado!!
enfim, parabéns e tal.